Na quarta-feira, no intervalo do cursinho, o professor
Grijó me perguntou, inquisitor: “não vai falar sobre Rubens Barrichello?” O professor (“e escritor, ambos em atividade”, que você encontra na lista de links como o proprietário do blog
Ipsis Litteris) queria a palavra de um “especialista” (?) sobre a volta por cima do piloto com mais largadas na história e que estava sob o risco de perder o emprego. É a primeira vez que escrevo atendendo a um pedido, e o post só se materializou, caro mestre, porque foi você quem pediu.
Antes de começar: nada contra o
Tema da Vitória. Adoro ouví-lo, me trás lembranças deliciosas. Também não tenho problema algum com o sentimento de nacionalismo, pois o trago comigo. Só acho que ele precisa de moderação para não se tornar devoção cega.
Levemos então o assunto como numa mesa de boteco, ou na bancada da cantina. Porque falar muito a sério sobre Rubens Barrichello desperta paixões e reações imprevisíveis.
Barrichello é o mais experiente piloto da história. Fato, incorrigível, atestado pelas suas mais de 260 corridas. Do alto dessa superlativa estatística está um piloto respeitado pela F-1 e por todos os países por onde passa, mas que recebe uma indiferença dolorida em sua terra natal. O relativo insucesso de Barrichello na F-1 explica parte desse sentimento de rejeição que envolve o mais experiente dos pilotos: Rubinho conquistou apenas 13 poles e mirradas 9 vitórias em sua trajetória na F-1, mesmo passando 6 temporadas inteiras pilotando a Ferrari no melhor momento da escuderia em toda a história.
Mas isso não basta para tentar explicar o que falta a Rubinho para ser tratado dignamente como
persona pública. Para falar de Barrichello é preciso mergulhar em várias histórias, sejam elas de psicologia de massas, do Brasil recente ou do próprio automobilismo brasileiro e mundial. É bom preparar o fôlego!
É preciso primeiro entender uma característica única do brasileiro: precisamos de um salvador da pátria. Precisamos de alguém que nos afaste da selva de pedra diária que vivemos a cada dia. Precisamos chorar diante de um televisor ao ouvir o tema da vitória. É a catarse que nos livra do sentimento antiquado de que somos um povo que não aconteceu e para atingirmos as poucas horas de alegria que uma vitória nos dá, recorremos ao esporte. O futebol e a F-1, por serem esportes mundiais, são as vitrines em que esperamos aparecer como campeões. No futebol somos genuínos gênios, quem duvida? Na F-1 fazemos o papel de desafiantes que vencem e convencem. Afinal, a gente dá um baile nos europeus no esporte deles, como tantas vezes Ayrton Senna fez com o francês Alain Prost.

Nessas horas, somos o maior país do mundo, Brasil-il-il! E nos livramos temporariamente do terceiro-mundismo indesejável que nos persegue. Podemos chorar porque vemos que há pessoas que podem vingar a decadência social, ética e econômica que nos rodeia. E continuamos a exigir que a safra de ídolos se renove em ritmo industrial, porque a dor é muita e precisamos continuar a chorar.
Foi assim quando começamos a desbravar o automobilismo e vimos Emerson Fittipaldi fazer história em 1972. O clima de ufanismo emergido no período militar nos fez acreditar que “ninguém segura esse país”. Dois anos antes vencíamos o mundial de futebol de forma consagradora, e a economia do milagre econômico ia de vento em popa. O título verde-e-amarelo de Fittipaldi foi apenas mais uma ótima notícia para a propaganda do regime militar.

Fittipaldi ainda venceu em 1974 e seus seguidos êxitos levaram o automobilismo nacional a, finalmente, ser “descoberto”. Nos anos 80 Nelson Piquet papou mais três títulos e nos mal-acostumamos a sermos campeões. Piquet, no entanto, nunca fez questão de vestir a carapuça do Brasil-il-il. Talvez por isso seja hoje um quase estranho entre os brasileiros que não acompanham F-1 de perto.

Aí, o fim dos anos 80 viu nascer um fenômeno esportivo e midiático sem precedentes na história, até então. Porque quando Pelé brilhou, a tv não era aparelho indispensável nas casas do Brasil. Mas quando a estrela de Ayrton Senna reluziu com força, as condições para que o semi-Deus surgisse eram das mais favoráveis.
Queríamos e precisávamos chorar. O recém-implantado regime democrático não se mostrou, no primeiro momento, capaz de sanar o caos econômico. A hiperinflação nos aterrorizava. O remarcador de preços era o vilão-mor do cidadão. Os olhos se enchiam d-água, mas onde buscaríamos uma desculpa para nossas lágrimas?
O futebol não nos dava tal condição. Depois do fiasco da geração de 1982 a seleção brasileira tornou-se um signo decadente, somente ressucitado em 1994, coincidentemente ou não, no ano em que Ayrton morreu. As lágrimas começavam a se avolumar nos olhos. Ayrton vencia o mundial de 1988.
Choramos copiosamente.
E continuamos a chorar nos anos seguintes. Poupanças congeladas? Ayrton é o antídoto. O presidente é um rato sob processo de impedimento? Tome tantantan. O tricampeão nos poupou do suicídio coletivo.
É claro que a vitória simplesmente pela vitória não é capaz de nos transportar para o terreno da histeria coletiva. O modo como Senna fazia suas conquistas acontecerem eram, de fato, emocionantes. A disputa feroz com Prost em 1988 e 1989 na McLaren é uma delas. Foi uma briga que Ayrton ganhou em uma e perdeu na outra vez, enquanto os dois dividiam o mesmo teto. A forma como Senna foi derrotado, aliás, deu ao brasileiro ares de justiceiro divino. Em 89 Senna foi vencido no tapetão, numa decisão unilateral do presidente da FIA, o francês Jean-Marie Balestre, desafeto de Ayrton, conterrâneo de Prost. Em 1990, Ayrton se vingou de forma cinematográfica: a batida premeditada em Prost, agora na Ferrari, na decisão do título no Japão foi instantaneamente subentendida como o ato desesperado de um vingador que ajustou suas contas com o destino.
Senna jogou para a torcida e não há, obrigatoriamente, demérito algum nisso. Talvez realmente houvesse a intenção de “fazer as pessoas mais felizes no Brasil”. Ayrton fazia questão de sacudir com orgulho a bandeira do Brasil e suas palavras nos agradavam porque ele falava o que queríamos ouvir. Foi se santificando aos poucos, unindo suas performances geniais a um discurso que causava comoção. A morte abrupta e trágica, aos 34 anos, fazendo aquilo que amava e que tanto nos emocionou foi o passaporte para o Olimpo, e produziu uma pergunta imediata: de onde vamos tirar outro ídolo para nos alegrar nas manhãs de domingo?
Agora, talvez não precisássemos mais chorar as mágoas do cenário político-econômico. Queríamos mesmo era puramente reviver o glorioso sentimento que Ayrton nos concedeu. Como conseguiríamos?
O sucessor não estava pronto. O mais preparado deles era o tal de Rubens Barrichello. Mas o novato não estava em condições. Era muitíssimo jovem, em início de carreira e ainda vagava por equipes fracas. Era preciso dizer ao torcedor que ele precisaria de paciência, que precisaria se acostumar a ver corridas sem esperar pelo tantantan ao final. E nós, teimosos, ofendidos por não conseguirmos chegar nem ao pódio, começamos a cobrar de um jovem garoto mais do que ele podia nos dar.
Mesmo sem jamais vê-lo em um carro de ponta, chamamos o menino de “pé-de-chinelo”. A pressão continuava a crescer e Barrichello, talvez também vítima da baixíssima auto-estima que sentimos enquanto povo, não fazia questão de se isentar das responsabilidades. No fundo, no fundo, o sinal que ele dava para a torcida era o de que ele queria o peso de ser o novo Senna, mesmo pilotando uma Jordan. A falta de hombridade e de senso prático para admitir a impossibilidade de reviver as glórias de Ayrton talvez tenha sido o pior pecado de Barrichello.
Mau piloto Rubinho nunca foi. A prova foi o interesse que ele despertou em 1999, quando seu bom desempenho lhe valeu o convite das duas equipes mais poderosas da F-1 à época: McLaren a Ferrari ofereceram trabalho a Rubens. O brasileiro assinou com os italianos e estava armada a condição ideal para novo frisson no Brasil-il-il.
“Agora vai”, nos fizeram pensar. E Barrichello não fez questão alguma de desmentir o coro global. Não está se dizendo aqui que a mídia ou a Globo ou Galvão Bueno são os responsáveis pela indiferença que nutrimos por Rubinho. Diz-se apenas que o tititi de quem precisa vender um produto gerou uma expectativa que não seria correspondida, por uma série de motivos, o principal deles atendendo pelo nome de Michael Schumacher.
O alemão chegara à equipe de Maranello 4 anos antes, contratado a peso de ouro para reorganizar o caos que imperava na fábrica italiana. Depois da morte de Enzo Ferrari, no final dos ano 80, o time vermelho mergulhou num caos homérico, motivado pela disputa de poder interno na empresa. O cavalinho rampante já havia passado décadas sem vencer um mundial e, a continuar naquele ritmo, iria dividir uma cova com seu fundador.
Bicampeão pela Benetton, Michael Schumacher arriscou uma carreira de sucesso indo para uma equipe que não era mais do que média em 1996, apesar de toda a história que ostentava. Sua missão era recolocar a Ferrari no hall das campeãs e para isso, Schumacher comeu poeira por 3 temporadas, fazendo um lento e gradual processo de reestruturação na equipe rossa. O poder do alemão e a confiança que os italianos depositavam nele era tal, que Schumi chegou a decidir a demissão e admissão de engenheiros e projetistas.
Schumacher resistia à pressão indomável da imprensa italiana, ansiosa por também soltar o “é campeão!”. Quando o carro estava bom o suficiente, em 1999, o alemão quebrou a perna ao sofrer um grave acidente no GP Inglaterra. Foi dado como acabado. Começavam os rumores de que a reestruturação ferrarista tinha chegado ao fim sem título algum para exibir.
No ano 2000 a pressão interna na Ferrari era avassaladora. A equipe investira pesado e os resultados não vinham. Era a hora do tudo ou nada dentro da equipe. O carro, finalmente, era o melhor do grid, mas não se podia ignorar a McLaren. Barrichello chegou de mala a cuia na casa italiana. E a residência tinha dono. Ele era alemão e tinha o queixo extremamente pronunciado.
Por tudo o que fez e por tudo o que representava dentro da equipe, sendo o responsável pela guinada da Ferrari em pouco mais de 4 anos, Schumacher era Deus no time italiano. Estava claro que o papel que cabia a Barrichello era o de escudeiro, segundo piloto. Óbvio, evidente. É assim que funciona a F-1, enfim.
Mas Rubinho acreditava (ou fingia acreditar) que podia brigar pelo título. Passou a choramingar para a imprensa e a protagonizar explicações que saiam pior do que o silêncio. As vitórias vinham em ritmo lento, algumas delas frutos de circunstâncias de corridas excepcionais. Em maio de 2002 ocorreu o episódio que se tornou símbolo do ambiente da Ferrari: Barrichello foi, numa decisão infeliz, para dizer o mínimo, forçado pela equipe a ceder a vitória do GP Áustria a Schumacher, na última volta. O mundo caiu sobre a Ferrari, lançada ao panteão das vilãs da história do esporte. Barrichello não demonstrou muita preocupação: “sou um funcionário dessa empresa, e uma empresa tem que lutar pelos seus ideais”. E o escárnio envolvendo seu nome no Brasil ganhou contornos inevitáveis.
Hoje, já fora da Ferrari, Rubens Barrichello anda pensando em lançar um livro quando se aposentar. Uma biografia em que promete revelar a caixa-preta dos anos de Ferrari. Hoje Barrichello demonstra irritação com os anos perdidos na casa de Maranello. Curioso o fato de essa irritação não aflorar enquanto Rubinho era pago pela escuderia italiana.
E mais: se estava tão insatisfeito com a situação no time rubro, porque não saiu?
Balanço final, caro Grijó: Barrichello sempre foi sim, um piloto de qualidade. Uma pena que decisões e palavras infelizes o tenham levado à memória coletiva como um simples falastrão atrapalhado.