domingo, 18 de janeiro de 2009

Ligando os Pontos: Um Adeus Sem Dor

Quando da morte do polonês Karol Wojtyla, em abril de 2005, a reportagem de capa da revista Veja era “Um Adeus Com Dor”. Assim foi grand finale do terceiro pontificado mais longo da história da Igreja Católica. João Paulo II, no topo da instituição mais antiga da humanidade por 26 anos, foi, também nas palavras da Veja, o “papa da certeza”, um contraponto a Paulo VI (desprezaremos, para efeito prático, João Paulo I, que governou o rebanho católico por apenas 33 dias e foi o real antecessor de Wojtyla no trono de Pedro), o papa anterior a João Paulo II e que se viu diante de severas disputas de poder no interior da Igreja no período da Guerra Fria.


De dentro do pequeno país (?) instalado dentro de Roma, Paulo VI não soube controlar bem a rixa entre progressistas e conservadores no cenário da Cortina de Ferro que se desenrolou na Europa dos anos 60 e 70. O papa do Concílio Vaticano II exprimiu no documento parte de sua confusa idéia de como evitar um cisma na Igreja cada vez mais dividida entre a Teologia da Libertação (que com um viés inegavelmente esquerdista, fazia, e ainda faz, sucesso no rebanho do 3º mundo) e as práticas conservadoras, defendidas pelo alto clero. Tentando agradar a todos, Paulo VI fez do Concílio Vaticano II um documento que de fato modernizou a Igreja, mas não encerrou as disputas internas pelo poder, tampouco finalizou o debate ideológico que permeava a instituição no período bipolar. Foi por isso chamado de “o papa da dúvida”. Seu sucessor prático, João Paulo II, foi “o papa da certeza”. Como um rolo compressor, esmigalhou a Teologia da Libertação, defenestrou sacerdotes que insistiam no debate ideológico acima do religioso e reafirmou que a fé é o principal meio de salvação do homem. Se colocando contra a cartilha modernizante do mundo laico, João Paulo II foi contra o aborto e o casamento gay, principais bandeiras da estrutura liberal que areja o mundo atual.

Por sua postura, o papa foi severamente criticado por organizações de direitos dos homossexuais e das mulheres. Sua cruzada, no entanto, não arrefeceu. O papa manteve a Igreja em caminhos conservadores.

João Paulo II, em sua trajetória, pode sim ter parecido leviano em algumas ocasiões. Mas é impossível não admirar a coragem e a certeza que o líder católico sempre demonstrou ter. Karol Wojtyla pode não ter feito tudo de forma correta aos olhos de muitos, mas tinha certeza de cada passo dado em seu pontificado.

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O papa da McLaren anunciou sua saída nessa semana. Ron Dennis anunciou sua retirada do comando do time do Woking duante o lançamento do MP4/24. A saída de Dennis era esperada e deu sinais de que foi planejada. O inglês esperou que seu pupilo Lewis Hamilton estivesse assegurado de vez na equipe para, somente nessas condições, passar a bola a Martin Withmarsh, seu sucessor no trono da equipe britânica. Ron Dennis é, nessa história o equivalente a João Paulo II.


Em 1980, enquanto Karol Vojtyla atravessava seu 3º ano de pontificado, Ron Dennis chegava ao comando da equipe McLaren. O quartel-general iniciado pelo neozelandês Bruce McLaren em 1963 já conquistara dois mundiais de pilotos e um de equipes. Depois de chegar ao ápice com Emerson Fittipaldi em 1974, e James Hunt em 1976, a equipe inglesa entrou em decadência, assistindo o domínio de Ferrari, Lotus, Williams e Brabham nos anos seguintes. Foi então que Dennis, vindo da F-2 com sua Project 4, se uniu ao time, iniciando a trajetória de glórias da equipe, que hoje divide com Ferrari e Williams o posto de mais tradicional da F-1.

Nos anos seguintes Ron Dennis promoveu uma revolução na McLaren. Ocupando o trono de São Bruce, o britânico fechou a proveitosa parceria com o magnata Mansour Ojjeh. Atraiu para seu staff o consagrado Niki Lauda, sempre acompanhado por um piloto mais jovem com talento para ser o sucessor do já bicampeão. Selou o acordo de publicidade/patrocínio com a gigante do fumo, a Philip Morris, que levou o nome dos cigarros Marlboro às alturas assim que a gestão Ron Dennis começou a dar certo. Em 1984 Lauda era campeão após um longo período do jejum. Começava a seqüência hegemônica da McLaren na F-1.


Os carros de cores vermelha e branca, que remetiam de imediato a um maço de cigarros Marlboro, não pararam de vencer. Em 1985 Lauda foi superado pela eterna promessa francesa, Alain Prost, que faturava seu primeiro titulo. A equipe também sagrava-se campeã de construtores. Em 86 a Williams era a favorita, mas a guerra entre Piquet e Mansell entregou de novo a taça a Prost. Em 1987 os motores TAG-Porsche da McLaren encontravam-se obsoletos. Surgiam então duas novidades no time de Woking: os motores Honda e a chegada de Ayrton Senna.

A superioridade da McLaren em 1988 foi tão flagrante que Senna e Prost batalharam um campeonato em particular. O novato desafiou o veterano com o aval do chefe e faturou seu primeiro título na F-1. E foi nessas condições que a categoria conheceu o estilo Dennis de trabalho. Contrariando um dos cânones mais sagrados da F-1, Ron Dennis não estabelecera uma hierarquia rígida entre seus pilotos. Enquanto o jogo de equipe reinava nos outros times, na McLaren Senna e Prost tiveram total liberdade para decidir o mundial na pista. Era corajosa a postura de Dennis, mas para alguns, estava claro que a situação não iria acabar bem. Em 1988 houve paz na equipe, apesar da ferrenha disputa nas pistas. Em 1989, porém, o cavalheirismo entre o piloto brasileiro e o francês teria fim. Percebendo certa preferência de Dennis por Senna e irritado com uma ultrapassagem de Ayrton na 1ª volta do GP San Marino, Alain Prost tornou pública sua insatisfação. A McLaren estava rachada. O modus operandi de Dennis revelou-se perigoso.


Ron, entretanto, não abriu mão de sua estratégia em nenhum momento. O chefe de equipe pareceu leviano, levemente irresponsável quanto à conduta de seus comandados na pista. Mas que irresponsabilidade deliciosa era essa! Dennis podia estar, aos olhos de muitos, fazendo um jogo reprovável, permitindo que seus pilotos botassem em risco um campeonato ganho. Mesmo criticado, como o papa João Paulo II em muitos momentos de seu pontificado, Dennis não voltou atrás. Como um homem de palavra, enfrentou as pressões e manteve sua tática. Louvável.

Apesar de tudo, a McLaren era a campeã do ano, tanto entre as equipes, quanto entre os pilotos. Alain Prost, mesmo sendo campeão, arrumou suas malas e foi para Maranello, tentar desfibrilar o caótico coração rosso da Ferrari. Deixou livre o caminho para Senna brilhar consecutivamente em 1990 e 1991.

Depois dos quase 10 anos de domínio, a McLaren conheceu o ostracismo novamente. Nos anos seguintes outras equipes subiram e desceram na montanha-russa da F-1. A Williams correu sozinha em 1992 com Mansell e 1993 com Prost. Em 1994 e 1995, os carros de sir Frank deram lugar aos Benetton bicampeões com Michael Schumacher. Em 1996 e 1997 a Williams voltou ao topo, respectivamente, com Damom Hill e Jacques Villeneuve. Em 1998, enfim, a McLaren voltava ao páreo (agora com novas cores, sendo patrocinada pelos cigarros West).


A parceria com a alemã Mercedes, iniciada dois anos antes, finalmente rendia frutos. O finlandês Mika Hakkinen foi bicampeão em 98/99. Depois disso, porém, a equipe parou diante do avassalador domínio da dobradinha Schumacher-Ferrari.

Somente em 2007 os carros de Woking voltavam a brigar pelo título. Agora com o bicampeão Fernando Alonso, procedente da Renault, e com o novato Lewis Hamilton, a McLaren viveria um remake dos anos Senna X Prost. Alonso, que esperava os privilégios de 1º piloto, se irritou com o novato inglês, que tinha a descarada preferência do chefe. Os dois guerreram em público, protagonizando cenas pitorescas como a do bloqueio imposto por Alonso a Hamilton nos boxes da McLaren em Hungaroring.


Mais uma vez, Dennis não esmoreceu. Continuou a deixar que Hamilton a Alonso resolvessem suas diferenças nas pistas. Criticado por torcedores e jornalistas (que a certa altura classificaram a política de Ron como “burra”), o chefe manteve sua decisão de interferir o mínimo possível.

O título não veio, apesar do favoritismo de Hamilton. O calouro inglês revelou sua inexperiência em doses generosas no fim da temporada. Porém, o episódio mais dramático foi o do escândalo de espionagem que abalou a McLaren. Projetistas da equipe de Woking conseguiram dados sigilosos da arqui-rival Ferrari. O caso foi descoberto e a equipe ameaçada de ser expulsa da F-1. Dennis sofreu um calvário público, não escondendo sua dor pelo papelão que a McLaren protagonizava. O projeto ao qual o inglês dedicou toda a sua vida estava por um fio.
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Ao se aproximar da morte em 2005, João Paulo II não escondeu sua debilidade física. O primeiro papa da era da tv e da internet, fez questão de deixar sua imagem de sofrimento e de redenção para o público. Sua dor foi acompanhada pelo mundo. A expressão de sofrimento de Karol Vojtyla quando visto pela última vez, tentanto inutilmente falar a multidão que se alglomerava na Praça de São Pedro, resumiu, em silêncio, o significado do cristianismo: não há salvação sem dor. Dias depois o papa foi enterrado, e retirou-se de cena sob os gritos de “santo já!”, num funeral sem precedentes na história da humanidade.

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A via-crucis de Ron Dennis também lhe redimiu. A McLaren não foi expulsa do mundial de F-1, mas teve todos os seus pontos enquanto time retirados. Ron Dennis teve de assistir calado o escárnio ferrarista.

Mas a grande redenção de Dennis aconteceu em 2008. Seu pupilo Lewis Hamilton conheceu a glória de ser campeão aos 23 anos na corrida mais emocionante da F-1. Ron Dennis, célebre por ser uma das figuras mais antipáticas do paddock, sai de cena agora, deixando essa história de tirar o fôlego para ser apreciada. Fez da McLaren um dos maiores mitos motorizados de que se tem notícia.

Dennis se liga a João Paulo II pela história de incrível obstinação que ambos escreveram, cada um em seu setor. Foram chefes durões, intransigentes em determinados pontos, mas inegavelmente vencedores. Defenderam seus respectivos modos de operação com propriedade. São separados apenas pelo instante final de suas trajetórias profissionais. João Paulo II protagonizou “um adeus com dor”. Dennis não.

6 comentários:

Felipão disse...

Escelente, Fábio. Aprendi, com o tempo, a admirar a competência desse cara, com suas soluções nos bastidores...

Speeder76 disse...

Quem diria Fábio. Excelente este post de comparação entre João Paulo II e o "Tio" Ron. Como será, quando for a ver do Bernie Ecclestone?


Bem escrito, bem escrito! Hoje também andei a bricar um pouco às fatasias. Como acho que deu certo, pode ser que tenha sequência...

Daniel Médici disse...

Compilar a história de Ron Dennis e da McLaren em um fôlego só é admirável. A metáfora católica também é de um mérito inegável.

Mas, se eu fosse comarar o João Paulo II com um chefe de equipe, ele seria pra mim o Frank Williams depois que a BMW rompeu a parceria. Assim como a Igreja, a Williams também perdeu o bonde da história.

SAVIOMACHADO disse...

Concordo com o pessoal. Excelente post. Mas fazendo as comparações, penso que Dennis errou muitas vezes. Já é diferente quando se fala de Karol Vojtyla. Parabéns, muito bem escrito.
Grande abraço.
SAVIOMACHADO

Anônimo disse...

Que grande post irmão!!!
Não é a toa os elogios do pessoal, muito bom trabalho msm.
Eu nem pude ler ele inteiro ainda, mas jah deixo aqui meus elogios cara.
E a comparação foi ótima, vc deve ter algum motivo em especial para comparar Ron Dennis ao Papa, que nós não conhecemos ainda rs

Fábio Andrade disse...

Felipão: absolutamente. Dennis pode ser acusado de ser antipático (mas ele não está pra sorri, né?) e tudo mais, mas sua trajetória com a McLaren é simplesmente admirável;

Speeder: brincar um pouco é muito bom. Ser um pouco pretenso, abandonar a linha "jornalística"/palpitarística. Faz bem, areja um pouco o blog;

Médici: era uma possibilidade. Optei por fazer a analogia entre Dennis por eles terem sido severamente criticados em determinados pontos mas manterem suas idéias. E também porque dentro ds McLaren o Ron era mesmo uma espécie de papa. Havia (há) toda uma reverência do time ao homem.

Mas a Williams é uma ótima "vítima" tmb;

Savio: dizer que o João Paulo II nunca errou é algo muito particuar. O que eu busquei salientar no texto é que os dois tomaram atitudes que foram consideradas reprováveis por muitos e acertadas por outros. Depende do ponto de vista.

O inegável é que eles ficaram firmes, mesmo com os bombardeios da opinião pública;

Maeda: nada, foi só uma idéia que me ocorreu mesmo. Elas surgem do nada.